terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ulisses em Eça de Queirós


Ulisses em Eça de Queirós

'' Como facilmente se compreende numa perspectiva holística, o hipotexto homérico em que Eça de Queirós se baseou na tradução de Leconte de Lisle (1868), desligado do poema em que se insere, é muito pobre, relativamente ao conto queirosiano e, mais em concreto, à ideia‑chave que comanda todo o texto, a perfeição, que, enquanto atributo dos deuses, repugna à condição humana.
Eça de Queirós principiou por realçar esta ideia através de um cuidado e bem sucedido retrato físico e psicológico de Ulisses na ilha Ogígia, como cativo da deusa Calipso.

Dele sobressai o contraste entre uma vida aburguesada de ócio, prazer e conforto – mas que o desumaniza – com a sua antiga vida de herói lutando contra ventos e marés, contra privações e obstáculos, mas por essa mesma luta humanizado, isto é, idêntico a si mesmo.
A análise do retrato é esclarecedora.

Com efeito, quando o narrador nos informa que das mãos de Ulisses desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos»; quando se refere às «pregas moles» da sua «túnica bordada de flores escarlates», cobrindo «o seu corpo poderoso que engordara»; quando ele diz que «reluziam esmeraldas do Egipto» nas «correias das sandálias que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências»; quando, enfim, nos apresenta Ulisses com «o seu bastão» –«maravilhoso galho de coral» – rematado em «pinha de pérolas, como os que usavam os deuses marinhos»;
quando nos fornece todos estes pormenores, não está apenas a deliciar‑nos com uma bela descrição plástica: numa simbiose bem conseguida, de forma e de fundo, aponta‑nos para o grande leit‑motiv da semiótica do conto – a desumanização do herói face à epopeia homérica, onde surge como um náufrago, nu, magro, esfomeado, carente e de fraca figura.

Assim o arremessara à ilha o mar revolto, havia dez anos.

Mas era também nessa situação que Ulisses se afirmava como homem. Agora, na prolongada segurança e conforto, garantidos pela forçada companhia da deusa que para sempre o queria fazer imortal, o herói sente que sua humana condição se vai esvaindo. É que onde os imortais e os mortais se associam na partilha da felicidade, é aí que surge a morte do homem, pois essa felicidade talhada não à sua medida, mas à medida e segundo o critério dos deuses, torna‑se presente envenenado e só pode redundar para ele em suplício mortífero.


Mas o desfiar da intriga confirma e aprofunda a ideia sugerida pela etopeia do herói. Calipso, em conversa com ele, compara‑se à sua mortal esposa, dizendo: «Je me glorifie de ne lui être inférieure ni par la beauté, ni par l'esprit, car les mortelles ne peuvent lutter de beauté avec les immortelles» (1868: 76). A ninfa sabe retórica e recorre à lítotes, para se tornar mais expressiva. Ulisses, sempre «subtil» até nestes pormenores, responde‑lhe adequadamente:

«Je sais en effet que la sage Pénélopéia t'est bien inférieure en beauté et majesté. Elle est mortelle, et tu ne connaîtras point la vieillesse; et, cependant, je veux et je désire tous les jours revoir le moment du retour et regagner ma demeure" (ibid.).

E por aqui se fica o herói homérico.
Mas o Ulisses queirosiano, muito pelo contrário, apresenta‑se na plenitude da sua eloquência e recupera o outro dos dois elementos da sua areté – o dom da palavra alada, «como na Assembleia dos Reis, diante dos muros de Tróia, quando plantava nas almas a força persuasiva» (1902: 339‑340). O seu discurso constitui uma longa e brilhante paráfrase da matriz homérica. Mas é muito mais que isso. Há nele uma diferença fundamental, face ao Canto V da Odisseia. No poema homérico, Ulisses não troca Penélope, apesar de («Cependant») mortal, e imperfeita –, por Calipso, apesar da sua imortalidade e perfeição. Esta ideia sofre, no hipertexto queirosiano, aquilo a que com Gérard Genette (1982:372) poderíamos chamar uma «transmotivação hipertextual», e consiste em dois níveis de transformação, a partir do menos radical para o mais radical, a que correspondem, respectivamente duas fases.
Numa primeira fase, a concessão transforma‑se em causa:

«Justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere!» (1902: 331).

Portanto, em Homero, é a pessoa de Penélope que está em primeiro lugar: Ulisses prefere‑a a Calipso, apesar de imperfeita. A tónica é posta na pessoa e não na sua imperfeição.
Em Eça de Queirós, é a própria imperfeição, enquanto incarnada em Penélope e, portanto, como signo da sua condição humana, que se torna a causa principal da sua preferência:

Ulisses prefere‑a a Calipso «justamente porque», isto é, porque imperfeita. Numa segunda fase, a ideia é como que retesada até um ponto máximo de tensão, para sofrer uma transformação mais radical.
Calipso põe a questão a Ulisses:
«Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal?» (1902: 339).
A resposta do herói aparece rápida e convicta:
«...ainda que não existisse para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses!» (ibid.).

Agora é a imperfeição enquanto tal, desincarnada, abstracta, a imperfeição pela imperfeição, como valor humano em si, o móbil fundamental da sua vida.
A defesa da sua posição é conduzida com inegável brilho e pode sintetizar‑se no profundo nojo humano daquela «perfeição divinas» daquele presente «perfeito» daquela impassibilidade eterna, que, monótona e estagnada, emparedava o herói entre a nostalgia de um passado «imperfeito» e a ânsia de um futuro novamente «imperfeito» mas talhado por si mesmo, à medida da sua humana condição, que lhe permitisse ver «o que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe» (1902: 341).

Ulisses recusa a imortalidade e assume a sua queda na história.
Ora isto é inteiramente novo, face ao hipotexto da Odisseia.....''



Texto publicado no volume colectivo Literatura Comparada: Os Novos Paradigmas, Porto, Associação Portuguesa de Literatura Comparada, 1996, pp. 569-574.